Por que encarar 2020 como ano letivo perdido prejudica a educação

Uma gota de água sobre uma nova planta

Se em janeiro alguém falasse que, em 2020, estudantes ficariam a maior parte do tempo afastados das escolas em razão da necessidade de distanciamento entre as pessoas, poucos acreditariam. Agora, sete meses depois do fechamento das instituições de ensino no Brasil, há quem fale em “ano letivo perdido”.

Gina Vieira Ponte, professora e criadora do premiado projeto Mulheres Inspiradoras, não concorda com essa visão, e defende que o conceito está relacionado às concepções educacionais empobrecidas que ainda vigoram no Brasil. “É uma perspectiva que reduz a educação a entrega de tarefa e a depósito de conhecimento. Ficamos repetindo essa história de ano letivo perdido porque ainda olhamos para a escola como uma estrutura enrijecida e fossilizada, e não como um conjunto orgânico que envolve professores, estudantes, sua gestão, um território e uma comunidade”, afirma.

Integrante de um grupo de mais de 300 professores de todas as regiões do Brasil, Gina explica que, nesse coletivo, divulgou um artigo falando sobre as três coisas que mais ouviu no início da pandemia: a aprendizagem não pode parar, precisamos salvar o ano letivo e mandar tarefa para a casa da criança.

“Ouvir essas três coisas me preocupou muito, pois elas anunciam muito sobre qual escola nós temos. Uma escola que, em um momento de crise e fragilidade, fala sobre entregar conteúdo porque o ano letivo e aprendizagem não podem parar, é uma escola que ainda precisa falar muito mais sobre humanidade, já que, nessas horas, a primeira coisa não é falar de tarefas, mas de apoio, acolhimento e escuta”. Gina ressalta que a aprendizagem é fundamental, indispensável, enviar tarefas com intencionalidade para a casa dos estudantes também, mas é preciso lembrar que o vínculo é o que conecta o aprendizado.

A educadora reconhece que além da perda de milhares de vidas devido ao novo coronavírus, houve consequências e prejuízos pedagógicos, sobretudo considerando a educação pública brasileira. Entretanto, insistir na tecla do ano letivo perdido impede uma reflexão sobre os aprendizados conquistados durante esse processo de suspensão de aulas presenciais e quarentena, que, segundo Gina, foram muitos.

A relação entre educação e desigualdade social
“Eu não me lembro de termos tido uma oportunidade de literalmente entrar na casa das crianças, conhecer sua rotina e ter uma relação tão próxima com as famílias. É a primeira vez que as redes de ensino puderam fazer um mapeamento minucioso da situação de cada estudante”, explica Gina.

Neste sentido, de acordo com a educadora, o período de aulas remotas permitiu observar, de maneira mais consistente, a relação entre educação e desigualdade social. No fim, esse processo abriu espaço para a compreensão ainda mais profunda da necessidade de políticas públicas intersetoriais e integradas para promover a educação. A escola como parte dos entes que integram as redes de apoio é algo que está estabelecido em dispositivos como o Estatuto da Criança e do Adolescente, na própria Constituição, mas nem sempre isso é visto com a importância que deve ter. Não se garante o direito à aprendizagem sem a observância da garantia de outros direitos. E só se faz isso atuando em rede.

“Acompanhei o caso da aluna de uma colega que não estava interagindo no ensino remoto. A professora foi atrás e descobriu que a família, que morava de favor, havia sido despejada e estava morando embaixo de uma lona, no meio do nada. Então, como é possível falar de continuar estudando para uma criança que não tem uma casa, ou acesso á água potável e banheiro para usar?”, questiona a educadora, reforçando que as redes de apoio devem, sim, envolver as escolas, que, em casos como esse, devem acionar a assistência social, conselho tutelar e outros órgãos responsáveis pela proteção de crianças.

Inclusão digital e criticidade sobre tecnologia
Antes de falar o quanto professores e os próprios estudantes aprenderam sobre novos dispositivos, plataformas, ferramentas e práticas digitais, Gina reforça que a pandemia e a migração forçada da educação para o mundo online mostrou que a inclusão digital é uma prioridade e urgência inadiável, discurso que tem sido praticado há, pelo menos, 40 anos.

“Precisamos entender que não dá para continuar insistindo em uma educação analógica e apartada das novas tecnologias quando temos um mundo altamente tecnológico e digital que se impõe e já é uma realidade. O educador português António Nóvoa diz que se continuarmos insistindo em uma educação apartada das novas tecnologias, iremos preparar os estudantes esplendidamente, mas para um mundo que não existe mais.”

Nesse sentido, a educadora reforça a necessidade de políticas públicas de inclusão digital consistentes para docentes e estudantes. As políticas são uma forma de garantir o uso da tecnologia na educação com intencionalidade, o que esbarra na importância do pensamento crítico sobre a tecnologia em si. “Durante a quarentena, pude perceber que nem sempre a chegada das novas tecnologias no contexto educacional corresponde a inovação que desejamos. Apenas a tecnologia não garante a inovação e aprendizagem. Para fazer sentido no contexto educacional, as políticas públicas de tecnologia devem ter intencionalidade, ancoramento nas ciências da educação e compromisso com a aprendizagem, além de respeitar a autonomia do professor e o protagonismo do estudante.”

A valorização e escuta docente
Considerando que a grande maioria dos educadores da educação básica são mulheres, Gina explica que há um processo de desvalorização histórica da profissão relacionada a uma questão de gênero. Entretanto, a pandemia colocou ainda mais luz na importância de não subestimar os docentes, sobretudo os que estão no “chão da escola” com os estudantes. “Pudemos perceber que um plano de retomada das aulas, feito no gabinete de uma secretaria de educação, pode parecer coisa mais incrível do mundo, mas quem vai dar vida, materialidade e aplicabilidade a esse plano é o professor que está em interlocução com a criança.”

Desde o começo da pandemia, a educadora participou de inúmeras transmissões na internet com outros profissionais da educação. Em sua percepção, redes de ensino que valorizaram a autonomia de seus professores, tiveram melhores resultados junto aos estudantes durante a quarentena.

“As redes que assumiram uma lógica que eu chamo de lógica produtivista, que foram aquelas que reduziram estudante a tarefeiro e o professor a burocrata do currículo, transformaram a educação em parte do problema que estamos vivendo. Muitas delas começaram o ensino remoto como se estivessemos em uma maratona de curta distância, com um volume descomunal de tarefas para o aluno e de burocracia para os professores. Esse modelo é insustentável. Um ou dois meses depois, o professor estava esgotado e adoecido e o estudante tinha evadido do processo pedagógico dentro de ensino remoto”, explica.

A importância de ouvir os envolvidos
Antes de pensar em um processo de acolhimento para professores e alunos na volta às aulas presenciais, Gina defende que redes de ensino devem fazer uma autoanálise sobre como conduziram as atividades e interlocuções durante a quarentena. Essa leitura crítica sobre o trabalho está relacionada à uma reflexão sobre o uso de mecanismos para garantir a escuta de todos os segmentos das escolas.

“Acredito que aprendemos pelo exemplo. Então o professor vai aprender a ser mais democrático com seus estudantes e as respectivas famílias se ele se sentir ouvido, se as soluções para o período de quarentena tiverem sido construídas de maneira coletiva”, afirma a educadora.

Foto: jcomp/Freepik

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