Desigualdades, resiliência docente, uso de tecnologia e importância da interação: quais foram as percepções trazidas e reforçadas pela pandemia
Em entrevista à Vivescer, Luciano Meira, professor da UFPE e empreendedor, reflete como as escolas fechadas incentivaram reflexões que vão desde o uso da tecnologia, a gestão local, a disponibilidade para a mudança e a necessidade de uma coordenação do MEC. A pandemia de Covid-19 impôs à educação uma mudança estrutural profunda, que vai além do lugar físico e a forma como as aulas acontecem, envolvendo o próprio fazer docente, a interação com os estudantes, metodologias, técnicas de engajamento e outros elementos. No ano passado, entretanto, dois fatores trabalharam contra diretores, coordenadores e professores: a falta de tempo para planejar um esquema de educação a distância que funcionasse de acordo com as especificidades de cada local e a pouca ou quase nenhuma experiência diante desse tipo de situação. Agora, o cenário é outro. Depois de mais de um ano de pandemia, quais aprendizados foram contabilizados no fazer educação? Como os professores se adaptaram? As redes de ensino se mobilizaram para discutir a questão do acesso de estudantes à tecnologia e internet? Para debater todas essas questões, a Vivescer conversou com Luciano Meira, professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e empreendedor. Confira a seguir. Vivescer: Se em 2020 a maioria dos profissionais de educação foi pega de surpresa com o cenário imposto sobre o mundo todo, esse ano já é possível conversar a partir das experiências vividas. O que nós não sabíamos sobre educação no ano passado e já sabemos hoje? Luciano: Do ponto de vista estrutural, tem dois aspectos. O primeiro deles nós já sabíamos, mas com a pandemia ficou ainda mais evidente, que são as intensas desigualdades vividas no mundo da educação do ponto de vista demográfico, geográfico, de classe, cor e gênero. Nesse momento, elas ficam ainda mais intensamente dolorosas, porque os impactos são muito grandes nos sistemas de educação. O segundo ponto é que o Brasil não tem a educação como prioridade ou como estratégia nacional de transformação social que busca melhorar esses sistemas de ensino. Também tem os aspectos do cotidiano da escola. Mesmo com toda a desigualdade e dificuldade de acesso, a ideia de transformação digital por meio de mudanças comportamentais habilitadas por plataformas finalmente chega e se instaura no mundo da educação de forma bastante contundente. Outra percepção é que não é a tecnologia que vai mudar a engenharia didática da escola. Nesse processo de transformação digital, as tecnologias habilitam as mudanças comportamentais, mas para isso requerem um design instrucional, inovador e adequado a cada contexto de uso. O design instrucional não é só o planejamento de aula, é algo mais amplo, um conjunto de abordagens que vão envolver metodologias ativas e diversificadas. Ele é absolutamente essencial para qualquer mudança que queremos implementar. Não são as aulas que vão mudar a escola. São as experiências inovadoras e significativas que o farão, junto com metodologias e novos materiais didáticos. Tudo isso nasce, emerge e se desenvolve no contexto de um design instrucional inovador. Vivescer: Durante esse ano, muitos professores relataram uma mudança de mentalidade que foi necessária para ‘virar a chave’ do presencial para a distância. Quais foram alguns dos principais aprendizados do fazer docente nesse período? Luciano: A maioria das pessoas pensava que os educadores eram muito resistentes a mudanças e inovação tecnológica. Eu sabia que não era bem assim, e agora há uma percepção diferente. Isso se conecta a uma maior ênfase na construção de relacionamentos durante a pandemia. Acredito que a distância fez com que mais professores percebessem que uma das principais funções da escola é criar e manter relacionamentos entre estudantes e educadores e com a comunidade. A escola é um grande engenho conversacional e, sem isso, mesmo as práticas mais tradicionais de ensino não vão se dar de maneira apropriada sem o estabelecimento de relações. Uma pesquisa do Instituto Península mostra, inclusive, que a primeira coisa que 50% dos professores tentaram fazer logo no início da pandemia não foi dar aula, mas sim estabelecer relações com seus estudantes, mantendo no grupo do WhatsApp, perguntando como eles estavam. Outra pergunta extremamente inadequada que muitos consultores e palestrantes fazem é como substituir alguma atividade que o professor faz por tecnologia. Acho que uma coisa que os docentes aprenderam e estão fazendo é a busca por tecnologias que melhor apoiam as suas propostas, já que eles não querem ser substituídos. Não vai ser uma revolução no curso de um ano, mas acho que os professores estão mais na busca da instrumentalização tecnológica para apoiar a inovação que eles já realizam ou pretendem realizar. Vivescer: Sabemos que foram muitos os desafios. É possível elencar os três principais que dificultaram a educação durante esses meses? Luciano: Primeiro: o acesso certamente é um deles. Geralmente há um reducionismo do acesso apenas à conectividade à internet, mas na verdade, ele se divide em três dimensões: conectividade, oferta de dispositivos e recursos digitais. Sem dispositivos, o acesso não vale nada. E sem acesso, os dispositivos valem pouco, porque as principais funcionalidades estão na internet. Ao mesmo tempo, podemos ter acesso e dispositivos, mas recursos digitais mal distribuídos e apresentados. O terceiro setor tem desempenhado um papel fundamental para organizar recursos para dispositivos específicos em ambientes que têm conectividade. Em segundo lugar, do ponto de vista de gestão, temos que fazer uma revolução de gestão escolar nesse país. Quando falo na necessidade de uma estratégia nacional do MEC [Ministério da Educação], é para facilitar mudanças locais. Em todas as situações, mas especialmente em crises, precisamos ter líderes de verdade que sejam capazes de usar essa imaginação para construir ação, inovação e futuros possíveis. No Brasil, temos desigualdades muito grandes entre gestores: enquanto há profissionais excelentes e inovadores, outros são meros operadores do presente. O terceiro ponto tem a ver com a minha tese pessoal. A maioria dos professores está disponível para mudança e temos muitos jovens na escola. Mas eles não são instrumentalizados para a transformação. Temos que cuidar melhor da base nacional de formação de professores. Eu vejo processos formativos que só enfatizam o tradicionalismo dos processos escolares, quando na verdade queremos construir futuros possíveis. O Chile tem desenvolvido programas de formação que são referência mundial. Precisamos de uma coordenação nacional para fazer isso, ou ao menos de lideranças regionais. Se formos esperar essa mudança acontecer por geração espontânea, levará décadas. Precisamos de gente puxando isso com velocidade. Vivescer: Estamos no mês em que é celebrado o dia mundial da educação. Você é otimista em relação à educação brasileira? Luciano: Todo educador deveria ser. Educadores são pessoas responsáveis por projetos de futuro orgânicos, que são os nossos estudantes, são seres corpóreos. Na escola e na academia, cada um é um projeto de futuro que estamos alimentando com processos de aprendizagem diversificados. Mas para isso, esses locais deveriam ser esse ‘engenho de produção de futuros possíveis’, do ponto de vista imaginativo. Dentro desse meu otimismo, imagino que a escola pode ganhar centralidade nas comunidades, como um centro de reflexão onde as pessoas vão discutir coisas interessantes. O futuro do mundo do trabalho e do empreendimento na comunidade depende desses micro futuros sendo gerados na escola. Eu sou muito otimista, mas essas coisas levam tempo. Acredito que temos que investir nisso muito pesadamente para acelerar a chegada desse futuro. * Conteúdo em parceria com Porvir
Respostas