Pandemia traz a urgência de discutir solidariedade e ações de cidadania em sala de aula
O contexto de emergência reforçou debates sobre empatia, cultura de doação, solidariedade e responsabilidade coletiva. Saiba por que e como professores podem trabalhar os temas durante as aulas
O financiamento coletivo foi uma das principais ferramentas usadas por diversos setores desde a chegada do novo coronavírus no país. O Monitor das Doações, por exemplo, criado para contabilizar o montante doado, aponta mais de R$ 6 bilhões arrecadados em todo o Brasil. Essa mobilização e o próprio estado de emergência colocaram na pauta do dia assuntos como solidariedade, apoio, cultura de doação, empatia, responsabilidade coletiva e muitos outros, que invariavelmente chegaram aos ouvidos das crianças.
Para Marina Pechlivanis, sócia da Umbigo do Mundo e idealizadora da Plataforma Todo Dia é Dia de Doar Kids, a pandemia fez com que esses temas ficassem muito mais próximos da realidade de crianças e jovens, com um conjunto de fatores atuando nessa direção. Muitas pessoas que perderam empregos precisaram buscar fontes de renda alternativas, grupos organizaram campanhas para vizinhos, amigos e conhecidos, multiplicaram-se as arrecadações de alimentos e iniciativas que passaram a ser abordadas diariamente pela mídia.
“Não dá para generalizar, mas assuntos como gentileza e generosidade eram tratados pontualmente pelas famílias com as crianças. Era um tema que vinha à tona no Natal, em alguma data especial ou quando a criança via uma pessoa na rua, por exemplo. A pandemia criou um contato sem precedentes com o assunto, e de forma inesperada as crianças tiveram que se aproximar de todo esse repertório”, explica Marina.
Importância da mudar a abordagem
Katia Campanile, consultora em aprendizagem solidária, vê a questão por outro ângulo. Para ela, esses temas não ficaram tão próximos de crianças e jovens durante a pandemia quanto poderiam, já que muitas escolas ainda seguem um padrão conteudista e, por priorizar as disciplinas tradicionais, não abrem espaço para debater outros temas.
“Um dos pontos que explicam por que o tema não está tão evidente é porque infelizmente escolas não tiveram como premissa oferecer espaço e tempo para olhar para essas questões. Em escolas que ainda são focadas no conteúdo e que não respeitam a capacidade de concentração dos estudantes, fica tudo mais exaustivo. Por outro lado, aquelas que já romperam com esse olhar conteudista e que consideram a BNCC [Base Nacional Comum Curricular] e apoiam o trabalho nas habilidades, competências e projeto de vida, têm uma vantagem maior”, explica.
Katia defende que, nesse momento, uma possibilidade é adotar a aprendizagem solidária, ou seja, propor ações solidárias atreladas a eixos de aprendizagem do currículo como uma forma de aproveitar temas que estão em alta devido à pandemia e abordá-los em sala de aula, seja presencial ou virtualmente.
“É possível estudar um desafio social brasileiro levando em consideração os aspectos geográficos, políticos, históricos, de línguas, artes e diversos outros eixos, por exemplo. O bacana disso tudo é que, no final, esse trabalho dá origem a ações mais consistentes com maior possibilidade de promover transformações.”
Participação das famílias
Um dos pontos fundamentais desse trabalho voltado à solidariedade desde cedo é a participação das famílias. Estabelecer essa parceria possibilita a aproximação e fortalece relações. Além disso, Katia reforça que esse contato mais próximo pode, inclusive, potencializar ações dentro e fora da escola.
“Em 2019, quando no episódio do derramamento de óleo no litoral brasileiro, as crianças estavam muito preocupadas. Tenho relatos de alunos que falaram para os pais que não podiam jogar plástico fora porque as praias estavam cheias de óleo e as tartarugas não poderiam lidar com as duas coisas. Então mesmo famílias nas quais isso não era costume, passaram a mudar o comportamento diante de materiais recicláveis, por exemplo. As crianças têm um potencial incrível de ver o mundo com a lente delas, às vezes muito mais prático do que nós”, explica a consultora.
Existe assunto de criança?
Que atire a primeira pedra quem nunca ouviu – ou até mesmo falou – “isso não é assunto de criança”. Mas no caso de solidariedade e empatia, é sim. Para Marina, quanto antes esse tipo de repertório for discutido com os alunos, mais cedo despertarão sua consciência social, o que, consequentemente, terá efeitos disseminados nas sociedades do futuro. “Devemos entender que, além de seus direitos, as crianças também têm deveres cívicos e para com o próximo, já que vivem em uma sociedade na qual todos os processos são interdependentes.”
O projeto Todo Dia é Dia de Doar Kids visa trabalhar um conjunto de sete princípios com as crianças: gentileza, generosidade, sustentabilidade, solidariedade, respeito, cidadania e diversidade. Para Marina, a não valorização desses temas explica diversos acontecimentos atuais, como a inconsequência de gestos políticos e econômicos. “Se você aprende ou tem contato com esses temas desde cedo, naturaliza gestos e hábitos que, depois de crescidos, fica bem mais difícil de entrar com essa informação. As crianças captam as informações muito rápido e facilmente, e logo entendem que ser generoso é bom, ser gentil é melhor ainda e que quando ela doa, a sociedade ganha como um todo.”
Iniciar esse tipo de discussão desde cedo significa atuar na formação das pessoas, e não na correção de um comportamento. “Se a escola não oferece tempo e espaço para esse tipo de diálogo, como saberemos de fato se crianças têm ou não maturidade para essas discussões? Eu discordo. Acredito que elas são solidárias em sua essência”, completa Katia.
Como debater o tema
Existe uma multiplicidade de atividades a serem realizadas com os estudantes para refletir, debater e colocar os temas em prática. No âmbito da doação, as crianças podem fazer as doações mais intuitivas, como brinquedos ou roupas. Marina aponta, entretanto, que também é possível doar tempo para ensinar alguma coisa que se sabe.
Já na sala de aula, seja presencial ou virtual, a especialista reforça a importância de professores e estudantes mapearem junto a comunidade onde a escola está inserida e, a partir desse levantamento, elencar possibilidades de ações. No contato com associações e instituições do entorno, as crianças podem compreender quais são as maiores necessidades.
“Ao invés de só pedir alimentos, por exemplo, é importante trazer o problema para a sala e discuti-lo. Tenho certeza que os alunos trarão soluções muito especiais para resolver os desafios. Isso é assunto para criança sim, pois é a comunidade delas, e essa é uma forma de tratarem dos desafios conjuntamente e pensar na melhor forma de resolvê-los”, explica Marina.
Katia, por sua vez, reforça outras possibilidades, como alinhar as propostas pedagógicas com a BNCC e o trabalho por competências e habilidades, e aponta para a importância do protagonismo dos alunos. Ela cita uma experiência que usou a metodologia de aprendizagem por projetos para trabalhar desafios sociais e alimentação. Um dos grupos decidiu falar sobre o tema a partir da ótica de desigualdade social. Apesar de ter iniciado a pesquisa olhando para a África, os estudantes perceberam que também existe fome na cidade de São Paulo, e com isso quiseram saber como contribuir.
“Nesse projeto os estudantes trabalharam química, usaram matemática para entender quanto de alimento precisavam para fazer kits de entrega, envolveram arte para fazer as embalagens. Por isso sempre reforço a importância de perguntar aos alunos. São perguntas simples. ‘Como você acha que as pessoas estão se virando para se alimentar?’ ‘Como uma pessoa em situação de rua tem acesso a água potável?’. Eu acho uma tristeza e um desperdício as escolas estarem só focadas em resultado e desempenho. Infelizmente não existe momento melhor para falar sobre isso do que o que estamos vivendo”, completa Katia.
* Conteúdo em parceria com Porvir
Respostas